A Reconstrução da Capacidade Civil no Brasil

A Reconstrução da Capacidade Civil no Brasil

A Reconstrução da Capacidade Civil no Brasil

 

 

Desde a Convenção de Nova York, aprovada em 2007, a capacidade civil foi alterada e reconstruída também no Brasil. Tudo porque, anteriormente à Convenção, o Código Civil Brasileiro constava, nos artigos 3° e 4°, que pessoas com certos tipos de deficiência não eram consideradas capazes.

 

No entanto, para entender melhor essa história, é necessário voltar a antes desse período (2002), além de compreender o significado de capacidade. De acordo com Pablo Stolze, mestre em Direito Civil e juiz de Direito do Tribunal de Justiça da Bahia e professor da LFG, tradicionalmente, a capacidade era dividida entre Capacidade de Direito e Capacidade de Fato.

 

Capacidade de Direito é a capacidade genérica, a capacidade que toda pessoa possui. Já a Capacidade de Fato significa a capacidade referente à aptidão para a prática de atos civis.

 

Anteriormente, somente a soma dessas duas capacidades resultava em Capacidade Civil Plena. Entretanto, com a Convenção de Nova York e o Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD), houve a reconstrução do tema capacidade.

 

Desde então, uma perspectiva nova e inclusiva foi adicionada ao termo. Basta observar que os códigos 3° e 4° do Código Civil Brasileiro sofreram uma grande mudança a partir do EPD. Com força de norma constitucional, as mudanças fizeram desaparecer os fundamentos anteriores. “A pessoa com deficiência passou a ser considerada capaz numa perspectiva dignificante”, aponta o professor.

 

 

O que valia antes do EPD

 

De acordo com o Código Civil, em sua redação original, a pessoa portadora de alguma deficiência poderia ser alcançado pela incapacidade civil regulada nos 3° e 4°. O 3° tratava de incapacidade absoluta e, desta forma, em sua redação original, dizia que:

 

“São absolutamente incapazes a) menores de 16 anos; b) as pessoas que, por enfermidade ou deficiência mental não tenham discernimento para a prática de atos civis; c) as pessoas que, mesmo por causa transitória, não pudessem exprimir vontade.”

 

Em sequência, o artigo 4° dizia que são relativamente incapazes: “a) os menores entre 16 e 18 anos, chamados menores púberes; b) os ébrios, viciados em drogas e deficientes mentais com discernimento reduzido; c) os excepcionais sem desenvolvimento mental completo; e d) os pródigos. ” A partir da Convenção de Nova York e do Estatuto, a deficiência deixaria de ser fundamento ou causa de incapacidade civil.

 

A questão do pródigo, segundo o professor, requer um tratamento próprio. “O pródigo não é tratado dentro da perspectiva da pessoa com deficiência. É tratado pelo Código Civil. É considerado relativamente incapaz. Em geral, esse desvio de comportamento – a prodigalidade- está associado à compulsão”, explica Stolze.

 

O professor complementa ao afirmar que o pródigo pode ser interditado e ainda ter um curador, de acordo com o artigo 1782 do Código Civil. Além disso, ele pode praticar atos de natureza não patrimoniais livremente. O curador, neste caso, só entra “em ação” para atos com repercussão econômica.

 

No entanto, saindo da perspectiva do pródigo, o mais importante e relevante atualmente é a informação de que os fundamentos, que estavam nos artigo 3° e 4° sobre a pessoa com deficiência, desapareceram. “Afinal, a pessoa com deficiência, em uma perspectiva dignificante, passou a ser considerada capaz”, conta Stolze.

 

Outro ponto a ser considerado é a diferenciação entre capacidade e legitimidade. “Não se deve confundir capacidade com legitimidade. A legitimidade é uma pertinência subjetiva para a prática de determinado ato. Vale dizer que, uma pessoa pode ser capaz, mas não estar legitimada para a prática de certo ato. Por exemplo, dois irmãos, maiores e capazes, estão impedidos de casar entre si, pois falta-lhes legitimidade”, explica.

 

 

Uma revolução para dignidade

 

A Convenção de Nova York, no Brasil, tem força de norma constitucional. Assim, a partir da sua vigência e com a promulgação da Lei 13146/2015, uma revolução em prol da dignificação aconteceu.

 

A partir disso, a pessoa com deficiência (artigo 2° do EPD) não é mais considerada incapaz, na medida em que os artigos 6° e 84°, na linha que menciona a Convenção de Nova York (artigo 12° da Convenção), deixam claro que a deficiência não interfere e não afeta a capacidade civil do ser humano. O conceito foi reconstruído, modificado para dignificar a pessoa com deficiência.

 

Portanto, toda pessoa, mesmo que deficiente, é dotada de capacidade legal, mesmo que, para se locomover ou conversar, por exemplo, precise de um cuidador.

 

“Com isso, respeita-se a dignidade, pois se trata de um conceito inclusivo”, aponta o professor. No entanto, ainda é preciso entender que existem vários casos diferentes de deficiência e que, anteriormente, todas caíam no mesmo “cadinho”: considerar a pessoa incapaz e condená-la ao rótulo de incapacidade civil. “Não há mais espaço para isso”, complementa.

 

Por isso, de acordo com o professor Stolze, o item 2 da Convenção diz que os estados reconhecerão que as pessoas com deficiência gozam de capacidade legal, igualdade de condições com as demais pessoas em todos os aspectos da vida. “É um grande avanço!”, comemora.

 

 

Artigos mais importantes do EPD

 

É de suma importância conhecer e entender os artigos principais do Estatuto da Pessoa com Deficiência, pelo seu caráter abrangente, dignificante, inclusivo e não discriminatório, a saber:

 

Art. 1 – É instituída a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania.

 

Art. 2 – Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.

 

Art. 6 – A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para:

 

I – casar-se e constituir união estável;

 

II – exercer direitos sexuais e reprodutivos;

 

III – exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar;

 

IV – conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória;

 

V – exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e

 

VI – exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.

 

Art. 28 – Incumbe ao poder público assegurar, criar, desenvolver, implementar, incentivar, acompanhar e avaliar:

 

I – sistema educacional inclusivo em todos os níveis e modalidades, bem como o aprendizado ao longo de toda a vida;

 

II – aprimoramento dos sistemas educacionais, visando garantir condições de acesso, permanência, participação e aprendizagem, por meio da oferta de serviços e de recursos de acessibilidade que eliminem as barreiras e promovam a inclusão plena;

 

III – projeto pedagógico que institucionalize o atendimento educacional especializado, assim como os demais serviços e adaptações razoáveis, para atender às características dos estudantes com deficiência e garantir o seu pleno acesso ao currículo em condições de igualdade, promovendo a conquista e o exercício de sua autonomia;

 

IV – oferta de educação bilíngue, em Libras como primeira língua e na modalidade escrita da língua portuguesa como segunda língua, em escolas e classes bilíngues e em escolas inclusivas;

 

V – adoção de medidas individualizadas e coletivas em ambientes que maximizem o desenvolvimento acadêmico e social dos estudantes com deficiência, favorecendo o acesso, a permanência, a participação e a aprendizagem em instituições de ensino;

 

VI – pesquisas voltadas para o desenvolvimento de novos métodos e técnicas pedagógicas, de materiais didáticos, de equipamentos e de recursos de tecnologia assistiva;

 

VII – planejamento de estudo de caso, de elaboração de plano de atendimento educacional especializado, de organização de recursos e serviços de acessibilidade e de disponibilização e usabilidade pedagógica de recursos de tecnologia assistiva;

 

VIII – participação dos estudantes com deficiência e de suas famílias nas diversas instâncias de atuação da comunidade escolar;

 

IX – adoção de medidas de apoio que favoreçam o desenvolvimento dos aspectos linguísticos, culturais, vocacionais e profissionais, levando-se em conta o talento, a criatividade, as habilidades e os interesses do estudante com deficiência;

 

X – adoção de práticas pedagógicas inclusivas pelos programas de formação inicial e continuada de professores e oferta de formação continuada para o atendimento educacional especializado;

 

XI – formação e disponibilização de professores para o atendimento educacional especializado, de tradutores e intérpretes da Libras, de guias intérpretes e de profissionais de apoio;

 

XII – oferta de ensino da Libras, do Sistema Braille e de uso de recursos de tecnologia assistiva, de forma a ampliar habilidades funcionais dos estudantes, promovendo sua autonomia e participação;

 

XIII – acesso à educação superior e à educação profissional e tecnológica em igualdade de oportunidades e condições com as demais pessoas;

 

XIV – inclusão em conteúdos curriculares, em cursos de nível superior e de educação profissional técnica e tecnológica, de temas relacionados à pessoa com deficiência nos respectivos campos de conhecimento;

 

XV – acesso da pessoa com deficiência, em igualdade de condições, a jogos e a atividades recreativas, esportivas e de lazer, no sistema escolar;

 

XVI – acessibilidade para todos os estudantes, trabalhadores da educação e demais integrantes da comunidade escolar às edificações, aos ambientes e às atividades concernentes a todas as modalidades, etapas e níveis de ensino;

 

XVII – oferta de profissionais de apoio escolar;

 

XVIII – articulação intersetorial na implementação de políticas públicas.

 

De acordo com professor Stolze, antes mesmo do EPD entrar em vigor, a Convenção Nacional dos Estabelecimentos de Ensino ingressou com uma ADI 5357, discutindo a constitucionalidade desta regra.

 

“Porém, a ADI foi julgada e o STF (Supremo Tribunal Federal) firmou o entendimento de que a norma é inconstitucional. A escola não pode repassar para a mensalidade dos pais o custo para receber a criança com deficiência”, explica.

 

Art 40 – É assegurado à pessoa com deficiência que não possua meios para prover sua subsistência nem de tê-la provida por sua família o benefício mensal de 1 (um) salário-mínimo, nos termos da Lei no 8.742, de 7 de dezembro de 1993.

 

Art 69 – O poder público deve assegurar a disponibilidade de informações corretas e claras sobre os diferentes produtos e serviços ofertados, por quaisquer meios de comunicação empregados, inclusive em ambiente virtual, contendo a especificação correta de quantidade, qualidade, características, composição e preço, bem como sobre os eventuais riscos à saúde e à segurança do consumidor com deficiência, em caso de sua utilização, aplicando-se, no que couber, os arts. 30 a 41 da Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990.

 

Art 70 – As instituições promotoras de congressos, seminários, oficinas e demais eventos de natureza científico-cultural devem oferecer à pessoa com deficiência, no mínimo, os recursos de tecnologia assistiva previstos no art. 67 desta lei.

 

Art 76 – O poder público deve garantir à pessoa com deficiência todos os direitos políticos e a oportunidade de exercê-los em igualdade de condições com as demais pessoas.

 

Art 84 – A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas.

 

§ 1o Quando necessário, a pessoa com deficiência será submetida à curatela, conforme a lei. § 2o É facultado à pessoa com deficiência a adoção de processo de tomada de decisão apoiada. § 3o A definição de curatela de pessoa com deficiência constitui medida protetiva extraordinária, proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso, e durará o menor tempo possível. § 4o Os curadores são obrigados a prestar, anualmente, contas de sua administração ao juiz, apresentando o balanço do respectivo ano.

 

O Estatuto da Pessoa com Deficiência consagrou a tomada de decisão apoiada (art 1783-A do CC), preferencial à curatela, por meio da qual a pessoa com deficiência elege duas pessoas idôneas, de confiança, para prestar-lhe apoio em determinado ato ou determinados atos da vida civil. Por exemplo: a pessoa com Down elege apoiadores para a compra de um imóvel.

 

A partir daí, um juiz chancela a indicação da pessoa portadora de Síndrome de Down, sem precisar interditá-la. “No passado, você era obrigado a interditar essa pessoa. A curatela é uma medida extraordinária, de acordo com o Art 85 do EPD. Isso é um avanço!”, explica o professor.

 

Atualmente, de acordo com o EPD, são absolutamente incapazes os menores de 16 anos. Esta é a única hipótese de incapacidade absoluta no Brasil – a dos menores impúberes.

 

Os três incisos do artigo 3° foram revogados. E, o art, 4º, na mesma linha, ao tratar da incapacidade relativa, não se atrela mais à pessoa com deficiência. Sem dúvida, uma grande revolução!

 

 

 

 

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