Rafael de Lazari*
O instituto do Estado de Coisas Inconstitucional (ECI) foi reconhecido pela primeira vez na Corte Constitucional Colombiana, em 1997.
Em um primeiro contexto, estava em jogo a aplicação de direitos previdenciários a professores colombianos (Sentencia de Unificación nº 559/1997); em um segundo contexto, a questão penitenciária colombiana (após provocação envolvendo as penitenciárias de Medellín e Bogotá) (Sentencia de Tutela nº 153/1998); em um terceiro contexto, o deslocamento forçado de pessoas por conta da violência desencadeada pela ação de grupos armados (Sentencia T-025/2004).
Em todos os casos, pontos em comum partiram da existência de três requisitos (cumulativos) para que o instituto em comento fosse reconhecido:
o primeiro deles, a existência de verdadeiro litígio estrutural envolvendo a questão submetida à apreciação judicial, não bastando, portanto, a mera proteção ineficiente para o reconhecimento do ECI;
o segundo deles, um contexto de massiva violação de direitos fundamentais, não bastando, pois, pontuais afrontas para que o instituto se materialize (é claro que violações a direitos fundamentais importam a necessidade de movimentação do aparato estatal a fim de que estas cessem, afinal, a compreensão dos destinatários das normas constitucionais é individualizada; desrespeitos pontuais e casuísticos, contudo, não ensejam a inconstitucionalidade generalizada de um Estado de Coisas);
o terceiro deles, a deliberada omissão dos Poderes Públicos em fazer cessar o contexto estrutural de massiva violação de direitos (deste modo, caso fique demonstrado que as autoridades que compõem a Administração Pública estão atuando proativamente em prol da resolução do problema, de modo que esta somente não ocorre por circunstâncias alheias à vontade do agente público, não restará caracterizada omissão suficiente a ensejar Estado de Coisas Inconstitucional).
Requisitos (cumulativos) para o reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional:
● Litígio estrutural
● Violação massiva dos direitos fundamentais
● Omissão deliberada dos Poderes Públicos
Com efeito, o Estado de Coisas Inconstitucional não se assemelha às ações diretas de inconstitucionalidade, por exemplo, porque não se fixam em um dado caso ou uma dada inconstitucionalidade de determinada lei, emenda ou ato normativo, mesmo que de forma abstrata. É mais que isso. Parte, sim, de uma visão generalizada do problema, o qual tem expressão mais caótica e que afeta a todos no estado de direito, direta ou indiretamente.
Por certo que, pensando de forma ingênua, o mero reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional pouco ou quase nada alteraria o plano concreto das coisas, dado que a simples declaração não é o bastante para ceifar a massiva violação de direitos fundamentais.
Por isso é que se diz (e se espera) que o Poder Judiciário atue para além do âmbito de reconhecimento, no acompanhamento das políticas públicas capazes de modificar o quadro inconstitucional, o que se dará por meio do diálogo e da flexibilização das decisões prolatadas, neste sentido, pelo Supremo Tribunal Federal.
Nesse contexto, no Brasil, o Supremo Tribunal Federal foi chamado a se manifestar pela primeira vez sobre o instituto do Estado de Coisas Inconstitucional na arguição por descumprimento de preceito fundamental nº 347/DF (Supremo Tribunal Federal, Pleno. ADPF nº 347 MC/DF. Rel.: Min. Marco Aurélio. DJ. 09/09/2015), envolvendo a questão penitenciária pátria.
Promovida pelo PSOL (Partido Socialismo e Liberdade), almejava-se na aludida manifestação de controle concentrado de constitucionalidade o reconhecimento da falência da política penitenciária pátria no que diz respeito à dignidade a ser assegurada aos cumpridores de penas.
Afinal, é fato que o sistema prisional brasileiro carece dos atributos inerentes ao bom cumprimento dos fins sociais (e não meramente retributivos) da pena, haja vista o déficit crônico de condições humanas, estruturais e financeiras para lidar com a constante crescente de “hóspedes” a superlotar os estabelecimentos prisionais do país. Do caráter infraestrutural às políticas públicas carcerárias, certamente muito há de ser feito caso se queira dar efetividade ao princípio da dignidade do cumprimento da pena.
Dos tópicos formulados pela parte requerente, dois em especial lograram êxito unânime, a saber, a proibição do contingenciamento de recursos do Fundo Penitenciário Nacional, bem como o estímulo à realização de audiências de custódia pelo país inteiro.
Sem prejuízo destas, outras medidas também foram trabalhadas pelos ministros da mais alta Corte de Justiça do país, como a necessidade de deliberada fundamentação acerca da prisão e liberdade provisória (bem como das medidas cautelares diversas da prisão), ou a finalidade pedagógica do reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional.
Questão que merece especial atenção diz respeito à necessidade de parâmetros para que o Poder Judiciário (na figura do Supremo Tribunal Federal) atue quando do reconhecimento do ECI.
Muito embora se trate de instituto recentemente introduzido no ordenamento brasileiro, defende-se de antemão, pois, que a atuação judiciária ocorra com a parcimônia que se espera para a aplicação de um instituto excepcional, tal como o são os mecanismos de intervenção, a deflagração dos estados de defesa e de sítio, e o uso excepcional das Forças Armadas: todos estes casos marcam contextos de instabilidade institucional, muito embora a Constituição a ser aplicada seja aquela mesma vigente para os contextos de estabilidade.
Assim, urge que o Estado de Coisas Inconstitucional seja mecanismo excepcional, por importar a movimentação de inúmeras engrenagens tradicionalmente estabilizadas pelas teorias do direito e do Estado.
Pensa-se, contudo, que o sucesso do instituto dependerá da capacidade judiciária em diálogos com as demais funções e instituições republicanas, de modo que, ao contrário do que se pode pensar, a atuação do Poder Judiciário no reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional e na implementação de medidas que o alterem (migração de um Estado de Coisas Inconstitucional para um Estado de Coisas Constitucional), não caracteriza supremacia judicial pura e simples, mas justamente a colaboração dos Poderes da República na atuação conjunta e recíproca para solucionar o problema sub judice, razão pela qual se defende que o diálogo institucional deve preponderar.
A busca, portanto, deve ser pelo diálogo no reconhecimento do ECI, sem que sua materialização ocorra à mercê dos tantos organismos que compõem o Estado democrático de direito pátrio.
Mais questões sobre direitos constitucionais penais e direitos humanos penais podem ser encontradas em:
– LAZARI, Rafael. Manual de direito constitucional. 2. ed. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018.
– LAZARI, Rafael de; GARCIA, Bruna Pinotti. Manual de direitos humanos. 3. ed. Salvador: JusPODIVM, 2017.
Rafael de Lazari tem pós-doutorado em Democracia e Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra/Portugal. É mestre em Teoria do Estado pelo Centro Universitário “Eurípides Soares da Rocha”, de Marília/SP e professor convidado de pós-graduação da LFG.
Conteúdo editado pela LFG, referência nacional em cursos preparatórios para concursos públicos e Exames da OAB, além de oferecer cursos de pós-graduação jurídica e MBA.